Pensar no envelhecimento negro é pensar na história da igualdade de oportunidades. A história de quase 400 anos da atividade escravista luso-brasileira pode não explicar total e completa, porém ilustra a criação das condições histórico-materiais da discrepância etnico-racial neste território nacional. A começar com a assimilação do conceito de humanidade. Ser negro já significou ser sub-humano em um recorte temporal da história. Os direitos fundamentais do homem, discutidos desde o Iluminismo, excluíram outros segmentos populacionais que não os homens caucasianos. A abolição da escravidão em termos oficiais, por sua vez, não veio acompanhada de uma política de reparação que permitisse à população “recém-liberta” criar condições materiais de subsistência e dignidade.
Ser negro já significou (se é que ainda não significa) ser tolhido de muitos símbolos de sua existênica, sejam eles cruciais ou triviais, como o direito à remuneração, à moradia, à livre prática de sua fé, ao lazer. Ser negro já significou não ser pessoa de direito algum. E essa emancipação ainda não aconteceu de forma completa. A negritude ainda ilustra situações de tamanha desigualdade pela construção histórica imputada a ela. A saída das senzalas não se destinou para os então novos centros urbanos criados nas principais cidades do país, se não para ocupações muito longe do digno para a sobrevivência. Não houve inserção laboral. Não houve inserção educacional, principalmente quando esta era (é) um privilégio das elites caucasianas. Embora exista um efeito de sentido socialmente consumido que presume um “milagre” ou passe de mágica que mudou a situação dos negros nacionais (o que podem batizar de mérito), esse entorpecimento cumpre apenas a função de mascarar a construção histórica da opressão da população negra durante a história do mundo moderno. O descrédito e negação da luta apenas perpetua a dominação das condições econômicas e socioculturais que mantém negrxs longe da realidade material de outros humanos.
A etnia e cor da pele já pode ser um mapa dos desafios enfrentados por um rebento ao longo do seu processo de envelhecimento. Exemplo disso se mostra em São Paulo, maior cidade nacional e uma das maiores do mundo. Segundo o mapa da desigualdade 2019, da rede Nossa São Paulo, quatro dos distritos mais caucasianos do município são onde os habitantes costumam viver por mais tempo. Por sua vez, na outra ponta, estão quatro dos cinco distritos de maior população preta e parda. Em todos esses distritos, a idade média ao morrer é abaixo dos 60 anos. Ou seja, em média, as pessoas sequer chegam à velhice. Outros dados, dessa vez dos Indicadores Sociodemográficos da População Idosa na Cidade de São Paulo, também de 2019, indicam que quatro dos cinco distritos mais caucasianos da cidade são territórios com maior proporção de pessoas idosas. Por outro lado, os com menor proporção são quatro dos seis distritos mais negros da cidade. Seria mesmo mera coincidência? E se formos estratificar as condições de vida, como emprego formal, arrecadação de IPTU, favelas existentes nos distritos?
A construção de um envelhecimento ativo, saudável e bem-sucedido passa pela existência de condições materiais para este fim. O racismo estrutural, presente não somente no imaginário como nas instituições vigentes, ainda organiza a sociedade em que vivemos e manipulando a forma como vivemos. Embora não sejamos temporalmente responsáveis pela criação dessas condições, alguns ocupam posições de privilégios sustentadas justamente pela existência das mesmas. Falar, escrever pensar sobre consciência negra envolve, justamente, criar e manter consciência sobre as realidades e condições que a negritude enfrenta em uma cotidianidade ainda hostil, simbólica e materialmente. A interpelação sobre essa questão é, e continuará sendo, uma preocupação gerontológica.